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Intervalo
diálogo em torno de um poema
Teresa Projecto, Jessica Di Chiara
diálogo em torno de um poema
Teresa Projecto, Jessica Di Chiara
Há uns tempos, a Jessica escreveu-me, perguntando-me se gostaria de participar no próximo número da Dobra em torno da noção de intervalo. Escrevia-me ela que as minhas imagens lhe introduziram um estado de pausa, de suspensão, uma espécie de intervalo no fluxo das imagens que trocamos e recebemos na frequência dos espaços virtuais.
Começámos então um breve diálogo motivado por essa noção de intervalo, que nos levou ao poema homónimo de Otavio Paz. Li o poema, ensaiei uma tradução. Quase de imediato, o intervalo desdobrou-se: havia agora também o intervalo entre o poema em espanhol e a minha tradução, e ainda o intervalo entre estes dois e um terceiro poema, ensaiado pela tradução da Jessica. Comecei uma lista (gesto que me é familiar e compulsivo, mas que refreei, para não afogar todo o resto). Ao mesmo tempo que jogávamos com o intervalo entre estas formas da palavra (as nossas mensagens a tentar perfurar as nossas vidas ocupadas e separadas pelo Atlântico — a Jessica, no Brasil, e eu, em Portugal —, e a tradução no seu jogo mimético infinito, o mesmo poema desdobrando-se em infinitos poemas), aproximámo-nos das imagens que os poemas ofereciam. A ideia do intervalo como um gesto de suspensão do/no tempo, escrevia a Jessica, paralelamente à ideia de arquitecturas instantâneas, trouxe à superfície a própria fotografia enquanto técnica. Meditei nessa proposta das arquitecturas que tanto a paisagem como a fotografia me ofereciam — a fotografia desejando o absoluto através do instante de obturação, a paisagem desdobrando o paradoxo da perenidade e da partitura do tempo. Tentei explicar-lhe o contexto das imagens que, um pouco por acaso, tinha seleccionado para uma primeira partilha. Fotografo quase sempre no mesmo lugar, um pequeno vale entre os montados perto de Évora. Vou lá visitar pequenas coisas, entre grandes intervalos de tempo. Vou pelo menos três ou quatro vezes por ano (na verdade consigo ir muito mais vezes), e há vários locais que preciso de ver como estão. Visito esses lugares como a velhos amigos: observo as suas mudanças, pequenas e grandes perdas, coisas que não mudam, acontecimentos que se repetem todos os anos, admiro os frutos, as flores, a direcção dos ramos, dos caules e dos caudais, conto as pedras e como mudam de lugar, procuro decorar as cores e as mudanças de luz ao longo do ano. Visito as gamboeiras junto da estrada, o estado da estrada para a anta, a anta grande, a ribeira (em diferentes pontos de acesso), uma ou outra pedra… Conheço o som nesses lugares, como é diferente o ruído febril da Primavera do clamor do caudal das primeiras chuvas, ou como é diferente o silêncio do Inverno profundo do do zénite do Verão. |
Intervalo
Arquitecturas instantâneas suspensas sobre uma pausa, aparições, nem convocadas nem pensadas, formas de vento, insubstanciais como o tempo, e como o tempo dissipadas. Feitas de tempo, não são tempo; são a fenda, o interstício, a vertigem breve do entre em que se abre a flor diáfana: alta sobre o caule de um reflexo desvanece-se enquanto gira. Nunca tocadas, claridades vistas com os olhos fechados: o nascimento transparente e a queda cristalina neste instante do instante, todavia interminável. Para lá da janela: telhados desolados e nuvens velozes. Apaga-se o dia, acende-se a cidade, próxima e longínqua. Hora sem peso. Eu respiro o instante vazio, eterno. Octavio Paz Tradução de Teresa Projecto Intervalo Arquiteturas instantâneas sobre uma pausa suspendidas, aparições não chamadas nem pensadas, formas de vento, insubstanciais como o tempo e como o tempo dissipadas. Feitas de tempo, não são tempo; são a rachadura, o interstício, a breve vertigem do entre onde se abre a flor diáfana alta no caule de um reflexo se desvanece enquanto gira. Nunca tocadas, claridades com os olhos fechados vistas: o nascimento transparente e a queda cristalina no instante desse instante interminável todavia. Atrás da janela: desoladas coberturas e nuvens rápidas. O dia se apaga, ilumina-se a cidade, próxima e remota. Hora sem peso. Eu respiro o instante vazio, eterno. Octavio Paz Tradução de Jessica Di Chiara |
NOTA BIOGRÁFICA
Jessica Di Chiara é bacharela em Filosofia pela UFF e mestra em Filosofia com ênfase em Estética e Filosofia da Arte pela mesma Universidade. Atualmente é bolsista Capes e doutoranda em Filosofia pela PUC-Rio, com período sanduíche na Universidade Nova de Lisboa (Capes-Print). É autora de artigos publicados em livros e revistas acadêmicas, estudando a relação entre poesia, crítica e filosofia. Também atuou como curadora no coletivo A MESA, que promoveu exposições e cursos livres em galeria própria no Morro da Conceição, Rio de Janeiro, de 2015 a 2020. É editora da Revista Dobra – Literatura, Artes, Design (Portugal) e da Alter: Revista de Filosofia e Cultura (Brasil). Investigadora convidada do IELT – Instituto de Literatura e Tradição (NOVA-FCSH), coordena em parceria com Rita Basílio o projeto SEE – Sobre ensaio e ensaísmo. Tem interesse nas áreas de Estética, Literatura, Filosofia da Arte e Filosofia Contemporânea. / [email protected]
Teresa Projecto estudou pintura em Lisboa (Mestrado, 2014) e é doutora em Belas-Artes pela Universidade de Lisboa (2022). É investigadora no Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA), onde é membro do Núcleo de Pintura, e no Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), no Núcleo de Teoria Crítica e Comunicação. Como artista, participa regularmente em várias exposições, e é membro do colectivo de artistas ‘humor líquido’. Como cantora, colaborou com diferentes ensembles, maestros (como Michel Corboz, Paul MacCreesh, Paulo Lourenço, Peter Phillips, ou Pedro Teixeira) e professores de técnica vocal (como Jill Feldman, Geert Berghs, Ana Paula Russo, João Lourenço), e interpretou um repertório extenso e variado, por vezes como solista, em salas de concerto como a Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural de Belém ou a Fundación Juan March. Colaborou com o Espaço Llansol – Associação de Estudos Llansolianos, na edição do espólio da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Entre outros autores, traduziu para português Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, Pascal Quignard e Georges Bataille. / [email protected]
Instagram: @teresaprojecto / www.teresaprojecto.com
Teresa Projecto estudou pintura em Lisboa (Mestrado, 2014) e é doutora em Belas-Artes pela Universidade de Lisboa (2022). É investigadora no Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA), onde é membro do Núcleo de Pintura, e no Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), no Núcleo de Teoria Crítica e Comunicação. Como artista, participa regularmente em várias exposições, e é membro do colectivo de artistas ‘humor líquido’. Como cantora, colaborou com diferentes ensembles, maestros (como Michel Corboz, Paul MacCreesh, Paulo Lourenço, Peter Phillips, ou Pedro Teixeira) e professores de técnica vocal (como Jill Feldman, Geert Berghs, Ana Paula Russo, João Lourenço), e interpretou um repertório extenso e variado, por vezes como solista, em salas de concerto como a Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural de Belém ou a Fundación Juan March. Colaborou com o Espaço Llansol – Associação de Estudos Llansolianos, na edição do espólio da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Entre outros autores, traduziu para português Philippe Lacoue-Labarthe, Jean-Luc Nancy, Pascal Quignard e Georges Bataille. / [email protected]
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