< CHAMADA DE TRABALHOS >
Revista Dobra — 14
Palavra-problema: Livro Organização: Danielle Magalhães (UFRJ/FAPERJ) e Juliana de Moraes Monteiro (UFBA/UFPI-Capes) Data-limite para submissão de colaborações: 26 maio 2024 As propostas finais devem ser enviadas para: [email protected] "Aprende de cor este meu poema,
Livros duram pouco tempo, E este será emprestado, manchado, (...) Ou amarelecerá e será queimado, Quando a temperatura chegar aos 451, e por isso quão quente estará, quando sua cidade queimar... Por isso... aprende de cor este poema" De autoria do poeta húngaro György Faludy, o poema alude ao clássico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. No romance distópico publicado em 1953, o autor imaginou um mundo no qual todo e qualquer livro havia sido proibido, banido. Guy Montag é o personagem no centro desse estranho planeta: um bombeiro cuja atividade teria se convertido em um paradoxo. Em vez de apagar incêndios, Montag tem a função institucional de provocá-los. Toda palavra escrita tornara-se interdita e os livros são queimados em fogueiras nas praças públicas.
Décadas depois da publicação que, em uma certa interpretação, fazia uma ode à literatura e à importância da escrita, os livros acabaram por prescindir de seu suporte material canônico e alcançaram novos formatos. A alusão à temperatura da queima do papel, signo do seu caráter destrutivo, tornou-se hoje quase reacionária diante de uma cultura atravessada por múltiplas tecnologias de circulação. Além disso, uma crítica à unilateralidade da escrita como registro hierarquicamente superior vem sendo aplicada para falar de outras possibilidades narrativas que, dispensando a letra, teriam sido construídas transmitindo as palavras oralmente, através da voz. “Canta para mim, ó musa” é um dos versos homéricos mais célebres do Ocidente e evoca justamente a potência da oralidade. Se o livro foi historicamente atrelado à literatura, hoje, intelectuais como Leda Maria Martins reivindicam novos conceitos, como a oralitura. No ensaio Do livro à tela: o antes e o depois do livro, Giorgio Agamben lança a pergunta: “O que acontece hoje, quando o livro e a página parecem ter cedido lugar aos instrumentos informáticos?”. Em um momento da resposta, ele diz: “O pressuposto implícito é que material e virtual designam duas dimensões opostas, e que virtual é sinônimo de imaterial. Ambas as pressuposições, se não são completamente falsas, são pelo menos bastante imprecisas”. O filósofo italiano pensa a tela, assim como a página em branco, como o lugar da matéria, aquilo que os gregos chamavam de hyle e os latinos de silva: materia ou silva é o termo latino para madeira como material de construção, o que em grego significa também “floresta". Portanto, a palavra “livro” vem desse termo que os gregos e os latinos usavam para falar “madeira”, isto é, matéria. Nesse sentido, a matéria era “o lugar da possibilidade e da virtualidade”, ela era “a possibilidade pura” que podia receber ou conter todas as formas. É assim que Agamben lê a tela, como espectro da matéria, como “algo que perdeu o corpo, mas, de algum modo, conservou a forma”, sendo, assim como a página em branco, o lugar da “pura potência do pensamento”. Ao colocar em questão o livro como suporte privilegiado de leitura, torna-se imprescindível repensar os paradigmas que consolidaram apenas um determinado saber ao longo dos séculos. Em Performances da oralitura: corpo, lugar da memória, o conceito de oralitura recoloca o corpo como experiência de escrita e de leitura. Se grande parte do pensamento ocidental se firmou na exclusão radical dos movimentos do corpo, da voz, da oralidade, Martins traz o caráter desierarquizado e inclusivo das práticas performáticas de cenas ritualísticas, como a dos Congados. Como podemos pensar o corpo em performance como “local de inscrição de conhecimento”? Seria possível pensar o corpo como um livro encarnado? Na adaptação cinematográfica do texto de Bradbury, o cineasta François Truffaut apresenta o filme com os créditos lidos em voice-over, e não dispostos na tela. Esse gesto poético busca fazer-nos adentrar na angustiante sociedade que será apresentada. Ao fim, ele cria um final otimista diante de uma forma de governo fascista. A humanidade teria sido quase dizimada, mas da destruição floresceu também uma resistência: uma comunidade oculta em que cada pessoa abraçou a tarefa de se tornar um livro e memorizá-lo. A cena final mostra justamente uma pessoa idosa, no limite entre a vida e a morte, transmitindo o texto que escolhera aprender de cor para alguém mais jovem, fazendo com que a indestrutibilidade das obras que constituem nossa sensibilidade humana seja a resposta possível diante da barbárie e do horror de regimes totalitários. Nesse sentido, a aposta na sobrevivência dos livros duplicaria a força de Fahrenheit 451 como uma declaração de amor à linguagem e ao livro como suporte físico de pensamento. Em Linguagem e literatura, Michel Foucault diz que “a obra literária só existe na medida em que conjura e profana a literatura”. A partir disso, depreendemos que a literatura é aquilo que a coloca em questão, que interroga incessantemente sua suposta essência, não a reduzindo em um sentido. O filósofo recorre a um livro que, para ele, seria “o primeiro livro da literatura”, porque, além de colocar a literatura em questão, além de repetir outros livros, dispersando-os e dispersando o ser fugidio da literatura, o Livro de Mallarmé colocaria em xeque a ideia de livro, sendo não “O” livro, mas um simulacro do livro. Aí parece estar a radicalidade dessa obra para Foucault: uma vez que o livro é considerado o suporte da literatura, a literatura só se realiza na transgressão desse suporte. Talvez, esse debate convoque-nos a pensar o livro por outra perspectiva ainda. Libros Chiquitos foi o último livro de ensaios da escritora argentina Tamara Kamenszain. A partir dele, podemos pensar o livro, a literatura e o lugar do crítico literário desde um ponto de vista menor, chiquito, pequeno, como o dos filhos e das filhas, colocando em questão a perspectiva maior da lei do adulto. Kamenszain foi leitora de Roland Barthes e atestou explicitamente a influência do escritor francês em sua obra. É sabido que a sombra de um grande romance caía sobre Barthes na época de A preparação do romance, seu último curso no Collège de France. Seu romance ficou em estado de “preparação”, sustentando-se como aquilo que "ainda não chegou a ser" romance, em uma forma menor que atualmente é afirmada de modo propositivo por parte considerável da fortuna crítica. A proposta de um romance esvaziado, sem a pretensão de um grande projeto, vai na contramão da concepção moderna de livro como um grande projeto, uma obra. Sabemos que a cultura é cindida entre aqueles que podem portar a palavra e aqueles que são relegados ao silêncio. Após séculos de existência, seja oral ou inscrito em pedra, em papel, em pura luminância, o livro permanece fundamental para diversos âmbitos do pensamento que foram alicerçados por ele. As questões expostas acima são indagações a respeito do desejo da língua – que fala ou escreve – como um convite para o que gira em torno da palavra-problema "livro" ser pensado, repensado, desdobrado e lançado à abertura de outras perspectivas e proposições. |