Do sinistro e da liberdade. Em água
António Trindade
António Trindade
O tempo da pandemia é um tempo de medo, de recolhimentos, confinamentos e de exclusões. Por instantes parece termos regressado à Idade Média e aos históricos períodos das pestes (VARGAS LLOSA, 2020). Por outro lado, também suscita nostalgia e saudade dos nossos hábitos e rotinas da vida dita “normal”. Por momentos podemos também pensar nos românticos e na questão da estética do sublime, de Burke (1757), a Kant (1790), a Novalis (1800), a Eugénio Trias (1981), ou até ao eterno Goya. Algo de sinistro se presencia e estamos envolvidos nesta tela sinistra que nos cerca e acolhe no estado presente. Estamos também como monges eremitas nas nossas celas conventuais, como os antigos copistas escrevendo livros de horas, que se comparam a nós nos nossos teletrabalhos actuais, ora como professores, ora como artistas plásticos, ora noutras funções. Vem à memória também o “Nome da Rosa” de Umberto Eco (1980) e das figuras medievais como Salvatore, metáfora do sinistro e do medo. Alguns políticos surgem como inquisidores, entre a irresponsabilidade de alguns e a competência de outros. Neste cenário entram questões culturais e também antropológicas, entre a génese indo-europeia e a génese semita. É também um tempo de recolhimento, de memórias e até de arrumações interiores. Este tempo de isolamento e de sentimento de medo, de aflição e de adaptação a uma nova realidade, que se adivinha mais difícil, com todas as consequências que surgirão num futuro próximo, resultantes desta paragem obrigatória, mais acordam os espíritos livres. É neste recolhimento que a liberdade é crucial, porque sem ela o estar neste estado, dito de “calamidade”, tornar-se-ia insuportável. Neste contexto de inclusão, para além dos vários ofícios, o desenho e a pintura adquirem uma expressão e uma mensagem vital, porque possibilitam expressar a nossa catarse enquanto operadores plásticos, possibilitando, até pelo simples acto físico do fazer, criar imagens ricas e mensagens que testemunham tempos de uma nova e sempre complexa realidade. Neste contexto o referente e o signo da água emerge em nós, pelo tacto, sabor, sentido e valor desse signo insubstituível, sempre vital para a nossa subsistência e do mundo que nos cerca, como que limpando pragas. Referências BURKE, Edmund (1761), A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, Ireland, Graisberry and Campbell ECO, Umberto (1980), O Nome da Rosa, Lisboa, Difel. KANT, Immanuel (2017), Crítica da Faculdade do Juízo, tradução de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Imprensa Nacional da casa da Moeda (1ª ed. de 1790). NOVALIS, Georg Friedrich Philipp von Hardenberg (1884), Pollen and Fragments: Selected Poetry and Prose, Phanes Press, U.S (texto original de 1800). TRÍAS, Eugenio (2006), O Belo e o Sinistro, Lisboa, Fim de Século Edições (1ª edição de 1981). VARGAS LLOSA, Mário (2020), “Regreso al Medievo?”, Jornal EL PAÍS, 15 de Março de 2020. |
NOTA BIOGRÁFICA
António Trindade nasceu em Lisboa onde vive e trabalha. Viveu em Alcobaça até 1973, ano que se muda para Lisboa. É Professor Auxiliar na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa desde 2008. Licenciado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da universidade de Lisboa em 1992. Mestre em Arte, Património e Restauro, variante de História de Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em2002. Doutoramento em Belas Artes, especialidade em Geometria, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2008. Membro do Departamento de Desenho da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Tem 15 artigos publicados em revistas, três capítulos de livro e um livro “A Pintura Integrada em Tectos e Abóbadas e a Perspectiva Linear”, Lisboa, CIEBA, FBAUL, 2015, distribuído pela Princípia Editora, resultante de uma parte da sua tese de Doutoramento. Paralelamente, como artista plástico, tem realizado exposições regularmente, colectivas e individuais, a partir de 1991.
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