< CHAMADA DE TRABALHOS >
Revista Dobra — 12
Palavra-problema: Infância Depois de um «intervalo», o recomeço. Está aberta a chamada para submissão de propostas Data-limite para submissão de colaborações: 7 junho 2023 As propostas finais devem ser enviadas para: [email protected] ou [email protected] O mundo foi riscado por uma criança e ainda não recuperou.
Como num acidente. (Gonçalo M. Tavares) Segundo certas versões, a infância é aquela parte ou etapa da existência humana que deixa caminho livre e fértil às ficções espontâneas, sem vigilância, indiferentes à fronteira com a verdade ou a negociações com a “realidade”. Como na crónica de Carlos Drummond de Andrade em que o avô cronista descreve o neto e o seu modo de conversar: “O que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula a todo o instante na conversa e logo se materializa, real dentro do real.” Neste sentido, a infância exclui e desconhece a mentira.
Noutra versão, a infância pouco ou nada pode ser além de uma história narrada por adultos: “Não é a infância uma espécie de ficção que contamos a nós mesmos?”, pergunta Manuel António Pina, também no início de uma crónica. Parecendo glosar a conversão da infância em mentira retrospetiva, tal pergunta vem desaguar na impossibilidade de situar a verdade (ou realidade) da infância no tempo ou na experiência de quem a vive: “Talvez, quem sabe?, só um adulto possa compreender a infância. Talvez as crianças estejam perto de mais da infância para poderem vê-la.” (Assim fecha a crónica, que é sobre Winnie-the-Pooh.) Não é indiferente que ambas as frases estejam enunciadas como hipóteses. Qualquer que seja a definição, sempre uma relação tripla: infância, tempo e linguagem. Ou ausência de linguagem, tomando o in-fante etimologicamente como o que está ainda privado de fala, ou é anterior à fala e ao aprendizado do discurso. Giorgio Agamben, no livro Infância e História, explora esta privação da fala, a não naturalidade do discurso na vida humana enquanto evidência constitutiva da infância e problema que a infância coloca enquanto experiência peculiar da historicidade a que a vida humana, ao mesmo tempo, se abre e está sujeita. Infância, nesse sentido, não é primeira etapa ou ponto de partida da história, mas sua condição. Pôr a infância em discurso não será sempre de certo modo fazer-lhe violência, obrigá-la a sair de si, destruí-la? Esta pergunta pode ser o modo de acesso ao estatuto contemporâneo da infância: saturada de toda a espécie de discursos (formativos, psicológicos, éticos, lúdicos, etc.), ela está em simultâneo confinada em redutos próprios (“jardins de infância”), hipervigiada, canalizada de antemão (para a escola), anestesiada (tecnologicamente), ausentada da liberdade de circular, raptada pelo circuito da mercadoria infantil, e em muitos lugares da Terra obrigada a fugir, a refugiar-se, a viver sob permanente ameaça ou a ser bruscamente interrompida. Para mais, o cenário de uma catástrofe ecológica iminente, a que o excesso demográfico não é alheio, projeta a ideia de um futuro sem infância viável. Poderá insistir-se nesta distopia do mundo sem saída e não consolidar e agravar o poderio da “razão cínica” (Sloterdijk)? E, na esquiva ao cinismo imperante, que relação cultivam as artes, num clima que desde Hegel tende a ser póstumo à própria ideia de “Arte”, com o âmbito do infantil? Recorde-se que foi também no século XIX que Baudelaire escreveu esta poderosa caricatura, em que uma outra ideia de infantilidade se insinua: “O artista, hoje em dia e de há muitos anos para cá, é, apesar da sua ausência de mérito, um simples menino mimado.” (Salão de 1859) Num texto não menos famoso, o mesmo Baudelaire elogiou Constantin Guys com base numa poética da sensibilidade infantil: “A criança vê tudo como novidade; está sempre inebriada. Nada se parece tanto com aquilo a que se chama inspiração como a alegria com que a criança absorve a forma e a cor.” (O Pintor da Vida Moderna) Guys seria, então, o “homem-criança”, tipo genial para o qual “nenhum aspeto da vida está embotado.” Sobrará alguma coisa desta confiante metáfora infantopoética na era da performance iconoclasta, da generalização da arte conceptual, da difícil negociação entre a imprevisibilidade do impulso artístico e os condicionados imperativos da indústria cultural? Poderia ficar, como desafio geral desta Dobra nº 12, a hermenêutica indireta de um pouco citado verso de Ruy Belo, ele mesmo bem oblíquo, se se notar que já é problema saber em que lado está colocado o enigma: Eu curvo ante a infância a face embaciada (no livro Boca Bilingue). * Esta chamada não deixa de fora Lewis Carroll, nem a criança nietzschiana do Zaratustra, nem o poema VIII do Guardador de rebanhos, nem os grandes autores/artistas do que ainda chamamos Literatura Infantil. O que aparenta faltar neste texto-convite está do outro lado das linhas que ficaram aqui. |